Tive a felicidade — ou talvez o destino — de começar minha formação em Direito já depois dos 55 anos de idade, não por vaidade acadêmica, mas por indignação. A decisão de retomar os estudos aconteceu quando fui vítima de um dos mais absurdos erros do Judiciário brasileiro, acompanhado da omissão e da perversidade de instituições públicas que, em tese, deveriam garantir a segurança jurídica e proteger os direitos fundamentais de qualquer cidadão.
Ao ingressar na faculdade de Direito, eu não buscava apenas compreender as leis. Eu precisava entender a alma do sistema jurídico, sua promessa de equilíbrio e, sobretudo, por que ele falha com tanta frequência no Brasil. E foi nesse mergulho que conheci autores como Miguel Reale, Norberto Bobbio, Kelsen, Weber e Habermas. Cada um, à sua maneira, me revelou verdades inconvenientes: o Direito não é neutro, não é puro, nem caminha sozinho. Ele depende da confiança do povo. E quando essa confiança se rompe, a legalidade pode até sobreviver no papel, mas a Justiça morre no coração da sociedade.
Hoje, vivemos no Brasil uma crise que muitos não sabem nomear, mas todos sentem: a percepção generalizada de injustiça. E esse sentimento não vem apenas de erros judiciais pontuais. Ele vem de uma sequência de decisões, posturas e omissões institucionais que transformaram o STF (Supremo Tribunal Federal) — historicamente uma casa técnica, discreta e admirada — em um palco de disputas ideológicas e personalismos excessivos.
Por décadas, o cidadão comum mal sabia o nome de um ministro do STF. Hoje, não apenas sabe o nome de todos, como odeia alguns com fervor, como se fossem políticos de oposição. Isso, por si só, é uma prova da erosão simbólica da Justiça. Ministros se tornaram celebridades midiáticas, decisões passaram a ser transmitidas como novelas, e o povo passou a enxergar o Supremo não como guardião da Constituição, mas como um ator político que escolhe seus alvos e seus silêncios.
Essa percepção é grave, mesmo que você discorde das razões que a provocaram. Isso porque a Justiça não sobrevive sem o respeito espontâneo da sociedade. Como ensina Max Weber, o poder se sustenta não apenas por sua legalidade formal, mas pela legitimidade que a sociedade lhe atribui. Quando o Judiciário perde essa legitimidade, não há toga, nem artigo, nem decisão colegiada que devolva a confiança de um povo que se sente traído.
Miguel Reale diz que o Direito é sempre uma síntese viva de fato, valor e norma. Se a norma continua existindo, mas o valor se corrompe e o fato é manipulado, temos apenas a carcaça de um sistema legal, sem alma, sem justiça, sem paz. E é exatamente isso que milhares de brasileiros sentem: que o sistema está funcionando, mas não para eles.
Vivemos um tempo em que o cidadão, por mais lícita que seja a sua conduta, tem medo de falar. Um tempo em que o ativismo judicial se confunde com abuso de autoridade. Um tempo em que decisões monocráticas se impõem sobre a soberania popular, e em que o silêncio dos demais Poderes revela uma covardia institucional devastadora.
O resultado disso? Uma nação em que as pessoas obedecem por medo, e não por respeito. Em que o clamor por justiça é sufocado pela seletividade. Em que a própria democracia começa a ser vista como uma farsa funcional. Onde todos votam, mas poucos decidem.
Mas não é apenas o Supremo Tribunal Federal que deve ser cobrado. Há um pacto silencioso de omissão entre instituições que deveriam atuar como freios e contrapesos constitucionais. Onde está o Congresso Nacional, eleito para representar o povo e limitar excessos? Onde está o Ministério Público Federal, fiscal da lei e defensor da ordem jurídica? Onde está a OAB, que deveria ser a guardiã das garantias fundamentais e da legalidade democrática?
E onde está a sociedade civil organizada, que, em vez de se acomodar ao discurso politicamente conveniente, deveria erguer a voz diante da violação dos princípios que sustentam a República?
Em meu novo livro Inteligência Cidadã, que será lançado muito em breve, denuncio a omissão como aquilo que ela de fato é: um crime culposo coletivo, cometido sem intenção direta, mas com consequências aniquiladoras. Essa omissão alimenta a corrupção sistêmica, sustenta a impunidade e perpetua a precariedade dos serviços públicos essenciais. É esta mesma omissão que transforma o cidadão comum em cúmplice passivo de um sistema que oprime justamente aqueles que mais precisam de proteção, justiça e dignidade.
Se queremos restaurar a confiança na Justiça, não basta reformar o Judiciário; é preciso despertar a inteligência cidadã adormecida em todos os setores da nação, com coragem para reagir, clareza para discernir e responsabilidade coletiva para agir. Porque o silêncio dos bons continua sendo o adubo mais fértil para o crescimento da injustiça.
A Justiça exige, acima de tudo, um compromisso ético com o bem comum. Este é o seu mais legítimo e verdadeiro fim.
A Constituição Federal de 1988 foi uma conquista extraordinária. Ela instituiu o Estado Democrático de Direito e nos entregou um marco de solidariedade, cidadania e dignidade humana. Mas é preciso compreender que essa conquista não é autossustentável.
O sistema constitucional só se mantém vivo e eficaz quando é alimentado pela consciência cidadã e pela participação ativa da sociedade. Sem isso, o que foi construído com tanto esforço pode ruir diante da omissão, do autoritarismo ou da indiferença.
Por isso, insisto, precisamos despertar, participar e agir. Só assim manteremos nossas conquistas e transformaremos o Brasil em uma nação em evolução de convivência, justiça e respeito mútuo. E não em um mero país no qual o retrocesso institucional seja tolerado.
Por Paulo Cavalcanti – Empresário, advogado, escritor, fundador do Movimento Via Cidadã e presidente do Conselho Superior da Associação Comercial da Bahia
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